VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E MORAL CONTRA A MULHER
quarta-feira, 21/06/23 14:59Um tema com muitas camadas e profundidades
Por Luciana Gaudio*
Recentemente, fiquei muito impactada com mais um relato de violência contra a mulher perto de mim. Como psicóloga, atendo; e, como pessoa, conheço muitas mulheres vítimas de violência doméstica, que nem sabem que é violência aquilo que sofrem. Ainda é forte o estigma de que violência é só a física, mas a Lei Maria da Penha deixa claro que as violências psicológica, patrimonial, moral e sexual são tão nefastas quanto a violência física (em alguns casos, até mais), e também são consideradas CRIME!
O “Agosto Lilás” foi criado para combater a violência contra a mulher, e várias outras campanhas têm sido feitas devido ao número crescente de casos de violência e feminicídio. No entanto, mesmo com esses avanços, é grande a desinformação e, mais do que isso, a muitas vítimas falta a capacidade de perceber que aquilo que é olhado com espanto no outro não está distante da própria vivência. Já presenciei mulheres se indignarem com a violência feminina abordada na novela ou na vizinhança sem se darem conta de que também são vítimas. Essa dificuldade em reconhecer a violência como crime e como algo grave encontra respaldo na cultura machista em que vivemos e que naturaliza tais comportamentos, suavizando-os com falas do tipo: “é a natureza do homem”, “ele é boa pessoa, só ficou nervoso”, “foi a bebida”, “mas a mulher provocou”, entre outras. Percebo também que, na maioria das vezes, a mulher que naturaliza a violência sofrida já tem algum registro de violência na própria família de origem – ela pode ter visto o pai tratar a mãe com brutalidade, ter sido criada com desrespeito à sua vontade ou ter ouvido palavras de baixo calão dos pais –, de forma que namorar alguém com as mesmas atitudes não parece tão espantoso, vai ficando algo “natural”… e NÃO PODE ser assim.
Não há perfeição, não há casal que não briga, mas é preciso estabelecer com clareza limites, e o principal deles é o respeito. Não se pode confundir, violência, ameaças, degradação moral, exploração material, sexo forçado e chantagem emocional com brigas e conflitos que são inerentes a qualquer casal. Associar violência com afeto é um perigo e uma verdadeira armadilha emocional. Percebo que o homem abusador, em muitos casos também, não percebe que o que faz é violência criminosa. Muitos juram (e acreditam!) que são bons maridos. É frequente também responsabilizarem a mulher, transferindo totalmente a responsabilidade pelos seus atos.
Por essa razão, a violência contra a mulher deve começar a ser combatida dentro de casa, na criação dos filhos. Se um pai grita, dá safanões e xinga a filha com palavrões ele está lançando todas as sementes para naturalizar o relacionamento abusivo. Se os pais exigem muito mais da filha do que do filho em relação às tarefas domésticas, por exemplo, também é naturalizado o abuso que se dá em várias nuances diferentes no cotidiano, pois a sobrecarga é uma delas. Se os filhos presenciam o pai tratar a mãe com rispidez, e ela se cala por medo, o exemplo está sendo incutido de formas diferentes na formação do filho e da filha desse casal: a filha aprende que deve se calar, e o filho, que pode agir assim com as mulheres. Da mesma forma, agredir uma criança e dizer que é para seu bem, que é porque a ama, em nada se relaciona com EDUCAR; devemos, sim, colocar limites para os filhos, aplicar sanções aos comportamentos inadequados, mas com firmeza, respeito e afeto. Violentar com palavras ofensivas, fazer chantagens emocionais, desrespeitar, com a desculpa de estar educando são práticas que formam a base para que a menina se torne uma mulher passível de ser abusada pelo seu cônjuge com esses mesmos mecanismos, e que o menino se torne o abusador.
Como a violência física se escancara de forma explícita, temos aqui o propósito de ressaltar que as outras violências precisam ser identificadas como tal e que são tão terríveis como a física. Enquanto a violência física deixa claro quem é a vítima, a psicológica e moral pode confundir a mulher, pois o próprio agressor, muitas vezes, se encarrega disso, fazendo-a acreditar que a culpa pela violência sofrida é dela.
A falta de rede de apoio e o fato de as pessoas ao redor (família, amigos e mulheres significativas) naturalizarem esses comportamentos constituem fatores que dificultam nomear o que se vive: VIOLÊNCIA! Outra dificuldade para sair de um relacionamento abusivo é que ele não se mostra violento o tempo todo, mesclando violência e afeto; com o ciclo da violência contra a mulher já mapeado, há um período de abuso e violência seguido de muita sedução, pedido de desculpas, vitimização que faz a mulher acreditar que a salvação daquele homem depende dela. Ele se descontrola, mas é boa pessoa, só precisa de ajuda e paciência. É um menino grande, de 30, 40, 50 anos… NÃO PODE SER ASSIM! Mulher não é centro de reabilitação de homem! Adultos precisam assumir as responsabilidades dos seus atos, isso é o mínimo! Não pode haver sobrecarga! A conta matemática neste caso não admite fração, ela é exata: cada um assume 100% a responsabilidade dos próprios atos e da própria vida e, no que se refere à vida a dois, cada qual assume 50% de responsabilidade. Esse é o caminho emocionalmente saudável e justo de um casal.
Mesmo sem NUNCA ter sofrido agressão física, sentir medo já é um sinal claro de que a violência está ocorrendo. E a violência contra mulher não escolhe cor, classe social nem capacidade intelectual. QUALQUER mulher pode vivenciar sem perceber, mesmo sendo muito inteligente, capaz e bonita (dentro dos padrões sociais restritos).
Não é um tema simples, e muitas variáveis devem ser consideradas em sua análise. Eu tenho a impressão de que a maior prevenção para a ocorrência da violência é o tratamento respeitoso pela família de origem, sendo outro elemento preventivo ter o registro de relações não abusivas ao longo da vida e uma rede de apoio esclarecida. Como a mulher conseguirá NÃO NATURALIZAR violência associada a afeto se ela não VIVENCIAR outro tipo de relação? Ela não terá nem registro interno para reconhecê-las e diferenciar uma da outra… Eu disse vivenciar, não teorizar! Saber não é suficiente, é preciso VIVER uma relação de respeito para registrá-la como possibilidade efetiva. Muitas vezes, essa vivência será tardia, ela será construída e buscada fora de seu círculo e de sua zona de conforto que não têm como oferecer esse registro. Nesse momento, é preciso romper padrões e isso não é fácil, pois lança a mulher em um sentimento de desamparo e não pertencimento que muitas vezes a faz retroceder, mesmo sabendo que o melhor é seguir e enfrentar; o instinto de preservação e o medo de não dar conta (bastante alimentado pelo parceiro abusivo) falam mais alto.
Ouvindo tantas mulheres, tenho convicção de que é preferível lutar contra as próprias sombras e seguir em frente, buscando o resgate de si mesma, do que se entregar e morrer em vida, refém do medo e de uma vida ilusória. Sim, é ilusão achar que está “salvando” a família, sendo que não está salvando nem a si mesma; é ilusão achar que está preservando os filhos, quando na verdade se está condenando-os a repetirem o mesmo padrão pelo exemplo ou se privarem de vivências saudáveis pelos traumas instalados. Não é fácil! Mas já é um bom começo buscar terapia e construir novas conexões que possam oferecer estas vivências de respeito.
Às vésperas de dar à luz mais um MENINO, vejo-me reflexiva: quanta responsabilidade conseguir transmitir a eles uma formação que contemple o profundo respeito a todas as pessoas e principalmente às mulheres. Não podemos aceitar que ninguém nos desrespeite, mas também DEVEMOS respeitar a todos. O autorrespeito deve ser ensinado na primeira infância para que seja internalizado e reproduzido com os outros. Quando alguém nos desrespeita e não percebemos, provavelmente é porque o desrespeito já foi instalado como “natural”, e eu sou a primeira a praticá-lo comigo mesma; assim, aceitar que o outro também o faça é consequência dessa falta de registro. Nenhuma mulher aceita desrespeito porque “gosta”, porque é “sem-vergonha”! Afirmar nisso é mostrar uma visão muito rasa, reducionista e simplista sobre um tema que possui tantas camadas de profundidade social e psíquica. Todas as mulheres nesse perfil que tive oportunidade de acompanhar no atendimento terapêutico e que conseguiram nomear a violência e conseguiram buscar ajuda e instalar novas vivências não retrocederam mais no respeito adquirido. Porém, infelizmente, nem todas conseguem ter acesso à terapia e à ajuda necessária.
Quanta responsabilidade também ensinar a minha MENINA essas ponderações. Esse é um ensinar que passa pelo exemplo, ou seja, eu tenho que ter aprendido para que eles vejam pelo exemplo, que ensina mais do que as palavras. A responsabilidade primeira dessa aprendizagem é comigo mesma, e essa ordem não pode ser invertida, porque simplesmente não funcionaria se eu ensinasse uma coisa e fizesse outra. É preciso ter congruência.
Às vezes, tenho a impressão de que ensinar meu filho a não ser um machista é como ensiná-lo a se manter seco dentro de uma piscina. Esperar que ele saia totalmente “seco” da piscina social da violência masculina contra a mulher seria uma utopia, mas posso apostar que ele não saia totalmente molhado. Nesse contexto, não há como categorizar pessoas em vilões e mocinhos; pessoas são complexas. Mas é necessário entender que todos estão na mesma piscina, mas em posições e com vantagens nitidamente diferentes. Assim, construir uma roupa impermeável de conscientização e desconstrução da masculinidade tóxica já é um bom começo. Tenho esperança!
*Luciana Gaudio é pós-doutora em intervenções clínicas e sociais pela PUC Minas, doutora em saúde coletiva pela Fiocruz e mestre e especialista em psicologia pela UFMG. Ela também é especialista em neuropsicologia e fenomenologia e saúde mental, além de neuropsicóloga clínica atuante e professora universitária.