O último voo do Flamingo
quinta-feira, 17/11/16 15:00Por Anna Maria de Almeida Rezende
A obra: O último voo do Flamingo
O autor faz uma crítica severa da guerra e a miséria que assolou Moçambique no pós guerra, até a sua independência.Através de uma fina ironia, relata as situações políticas, sociais e econômicas de Moçambique nesse período sangrento, tentando mostrar em tom poético, ora irônico, ora divertido, ora fantástico, recheado de misticismo, sua denúncia de todos os desmandos e extravagâncias da classe política. Em seu romance, Mia Couto cria palavras, faz inovações na língua portuguesa para aumentar a expressividade de suas imagens e personagens, retomando crenças, ditos populares e provérbios da cultura africana, num completo domínio da linguagem e apresentando ao mundo toda a riqueza do "português moçambicano" ou o desabrochar da cultura moçambicana que, por motivos de ordem histórica mostrou-se por longo tempo submissa e desconhecida.
O livro é um grito do autor sobre a "perversa fabricação de ausência" – ou seja, a falta de uma terra de novo inteira, o sentimento e a descrença pelo imenso rapto de esperança de um povo ou uma nação profundamente agredida pelos anos de ocupação, pelas inúmeras guerras e pela ganância dos poderosos; uma terra exaurida, que não suporta mais conviver na mesma situação.
Como curiosidade, vale notar que houve por parte da editora/ Companhia das Letras, a intenção de manter a ortografia vigente em Moçambique.
O livro fala sobre os tempos em que os soldados da ONU estiveram neste país com a missão de paz e quando estranhos acontecimentos passam a assustar os moradores de uma pequena vila imaginária, Tizangara, ao sul do país. A vila está cercada de mistérios, pois corpos desses soldados estrangeiros começam, subitamente, a explodir e um fato insólito assusta a população: um pênis é encontrado decepado no meio da rua de Tizangara e um capacete azul aparece atirado em cima de uma árvore.
A história gira em torno de um narrador-personagem (sem nome!) que, por falar outras línguas, é designado como o tradutor oficial pela administrador da vila, Estevão Jonas, a servir de intérprete a um oficial das Nações Unidas; o italiano Massimo Risi, é o personagem destacado a investigar o caso.
Á medida que os fatos se sucedem, outros personagens vão surgindo e ganhando espaço no texto, deslocando-se o foco narrativo.
-Ana Deusqueira, única prostituta da vila, chamada para averiguações pelo fato de conhecer todos os homens do lugar; o padre Muhando, preso sob suspeita de ter sido o causador das explosões; Temporina, mulher com corpo de moça e rosto de velha, amaldiçoada, por nunca ter se envolvido com homem nenhum; sua tia Hortênsia, que depois de morta vira um "Louva a Deus" é uma mulher cheia de poderes; D. Ermelinda, mulher do administrador Estevão, esnobe, que adora poder e riqueza; Zeca Andorinho, o poderoso feiticeiro e cheio de mistérios, que fazia com que os enfeitiçados emagrecessem até ficarem do tamanho de formiga; Jonassane, filho de Ermelinda, assassino e traficante e também suspeito da morte dos soldados; Chupanga, adjunto do administrador, homem forte, arrogante com os pobres e subserviente com os poderosos; o velho Suplício, pai do narrador que, ao dormir, pendura os próprios ossos fora do corpo; e a mãe do narrador, que fica estéril ao dar à luz seu filho.
O mistério permeia por todo o livro e, à medida que outros personagens vão surgindo completa-se a atmosfera fantasiosa, em que versões e fatos são apresentados para levar o leitor a alguma conclusão, o que não se dá, pois todos são envoltos em verdades e ficções, realidades e magias, o natural e o sobrenatural, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, a força do presente ligado à história do passado.
Nota-se a força do "realismo fantástico" na figura de Temporina, que em "flagrante de amor, renascia".
Sua tia Hortênsia, que depois de morta, se transforma em "louva a Deus".
Estevão Jonas que quando toca a mulher, suas mãos aquecem até ficarem como "carvão acesso".
Suplício, que ao dormir, pendura os "próprios ossos fora do corpo".
Zeca Andorinho, capaz de fazer "ficar do tamanho de formiga".
A mãe do narrador que é cega apenas para o filho, com o qual "fica de mão dadas esperando o último flamingo voar nos finais de tarde".
Assim, em todo o correr da história permanece o enígma. Cada um dos personagens apresenta sua versão dos fatos, mas nada é constatado. O mistério permanece por todo o romance, ficando o leitor a questionar quais os motivos das mortes dos soldados acontecerem na vila. Ao final, as duas personagens centrais, o investigador Massimo Risi e o tradutor restam sozinhos nesse abismo que sobrou da terra onde antes existira todo um país à espera do que poderia ter acontecido. O estrangeiro não consegue entender o país e a própria África, que para ele continua um grande mistério! Diante de tantos acontecimentos, resta ao italiano Massimo Risi, entre uma perplexidade e outra, temer pela veracidade do relatório que terá de entregar a seus superiores. "E o que tinha ele esclarecido? nada – uma meia dúzia de estórias delirantes" . Só resta aos dois esperar que um outro voo do flamingo faça o sol voltar a brilhar depois de tanta escuridão".
Ao final, percebe-se que esse livro foi escrito com o principal interesse do autor, Mia Couto, de dizer aos moçambicanos que, em meio a todas as lutas por que passaram para sobreviver, que por todos os preconceitos, misérias, doenças, perdas de familiares nas guerras e nas grandes turbulências de sua história, eles deverão estar convictos de que tudo ao final dará certo e a população mais pobre,as verdadeiras vítimas das misérias que assolaram o país, esquecerão, darão a volta por cima renovando tudo o que foi destruído e desfeito mas que, por eles próprios, por seu esforço e amor a sua terra, tudo será novamente a todos restituídos. "O último voo do flamingo".
Vale citar também os ditos de Tizangara:
– "Os amados fazem-se lembrar pela lágrima. Os esquecidos fazem-se lembrar pelo sangue"
– "Saudade de um tempo? Tenho saudade é de não haver tempo"
– "O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois".
E os provérbios africanos:
– "As ruinas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão".
-"É o cão vadio que encontra o velho osso".
-"Quem veste o hipopótamo é a escuridão"
Sobre o autor:
Antônio Emílio Leite Couto – Mia Couto – autor desse romance, escrito em 2000, é filho de imigrantes portugueses, nascido em 1955, na cidade da Beira, em Moçambique, na África, uma das cidades mais atingidas pela guerra civil, que durou de 1976 a 1992.
Aos 14 anos, publicou seus primeiros poemas no jornal "Notícias da Beira". Em 1971, mudou-se para a capital Maputo, onde começou a estudar Medicina. Porém, abandonou a carreira médica e iniciou os estudos de Jornalismo. Em 1985, abandonou a carreira jornalística e se formou em Biologia, com especialização na área ecológica.
Em 1980, publicou sua primeira obra literária, o livro de poemas "Raiz de Carvalho". Em 1992, publicou seu primeiro romance "Terra Sonâmbula".
É hoje considerado um dos principais escritores africanos, comparado a Gabriel Garcia Marques, Guimarães Rosa e Jorge Amado. É autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Recebeu uma série de prêmios literários e em 2013 ganhou o Prêmio Camões, conhecido como a mais importante premiação da Língua Portuguesa . É também o único escritor africano membro da Academia Brasileira de Letras.