O tinteiro do meu avô

quinta-feira, 01/12/16 14:50

 

TINTEIRO DO MEU AVÔ

 

            Uma simples frase dentro de um dos livros de Machado de Assis que lemos na “Roda Leitura”.Uma frase tão insignificante que eu, querendo transcrevê-la,  não a localizo mais, chegando, mesmo, ao ponto de confundir  o livro  em que foi escrita.

– Esaú e Jacó ? O Memorial de Ayres? Memórias Póstumas de Brás Cubas?

            Sabe-se lá. A frase falava de um tinteiro antigo.Quando a li, lembrei-me, imediatamente,  do tinteiro do meu avô.

            Eu era menina e os objetos do pequeno escritório do meu avó eram meu encanto. Ali, havia um cofre enorme de ferro, pintado de verde. Quando meu avó o abria, depois de ter afastado todos de suas proximidades para preservar seu segredo, ele me chamava e me deixava ver seu conteúdo. Dinheiro, pouco. Mas eu achava mesmo assim que meu avô era rico. Ele tinha, dentro do cofre, pacotes e pacotes de apólices do Estado que, de tempos em tempos, em sorteios regulares, davam pequenos prêmios em dinheiro ao meu avô. Havia também um livro enorme e pesadíssimo, com uma capa de pano, abotoada com botões de osso, feita pela minha avó, exímia costureira. Ninguém podia manuseá-lo. Quando muito, meu avô deixava-me carregá-lo, recomendando-me, antes, sentar no chão para que eu aguentasse seu peso. Esse livro… Era um mistério. Só muitos anos depois vim a saber que ele era o “Livro de Contabilidade” dos tempos do primeiro e único mandato de meu avô como Prefeito de Queluz de Minas. Havia ainda pacotes embrulhados em jornal, amarrados com barbante grosso e com uma  recomendação escrita: – Queimar, após meu falecimento. E um revólver Colt.

            Mas o que me encantava mesmo, no pequeno escritório do meu avô Zezinho, era uma mesa torneada de peroba rosa. Sobre ela os objetos da minha infância. Quatro pesinhos de papel, dourados, mas azinhavrados,  canetas antigas com penas de metal,  um mata- borrão de madeira, daqueles que eram usados para eliminar o excesso de tinta  dos textos escritos à mão e o tinteiro.

            O tinteiro de meu avô. Esse tinteiro é muito lindo. Guardo-o até hoje entre meus objetos antigos, todos com história. A base do tinteiro é  de ferro, todo trabalhado. Eu falo filigranada. Porque   seus recortes laterais são muito delicados. Os dois tinteiros, propriamente ditos, são de vidro ou quem sabe de cristal, bem sólidos e pesados.Quando eu os lavo, brilham intensamente à luz do sol. Parecem mesmo cristal. Meu avó mantinha os tinteiros sempre abastecidos, com tinta Parker azul. Quando, às escondidas, eu brincava de baixar e levantar suas duas tampas móveis, corria o risco de entorná-los, fazendo um desastre na toalha de crochê feita por minha avó para guarnecer a mesinha do escritório.

            Dizia a minha tia que esse tinteiro acompanhava o meu avô desde os tempos em que ele era político influente na cidade de Queluz de Minas,  hoje Conselheiro Lafaiete. Não sei se eles eram de sua casa ou da Prefeitura.

            Meu avô foi político no tempo em que política era tão forte, (como se ainda não o fosse nos dias de hoje), que famílias inteiras se tornavam inimigas, porque suas facções partidárias eram opostas. Foi político do tempo em que, candidatando-se à reeleição para a prefeito, foi derrotado  por um voto, provavelmente o voto correspondente à sua abstenção na votação, uma vez que naquela época, abster-se de votar, quando o assunto era de interesse particular do candidato era uma questão de honra.

            Eu só vim a conhecer  o tinteiro do meu avô em Belo Horizonte. Porque ele, aborrecido com a política  local, deixou Queluz de Minas e veio morar na jovem Capital, alegando que aqui seus dois filhos teriam melhores condições de estudar. Político aposentado por força das circunstâncias,  foi, inicialmente morar no Bairro dos Funcionários. Mantinha contato com os políticos da época e orgulhava-se de ser íntimo de Mello Viana, Milton Campos e Otacílio Negrão de Lima. Posteriormente,  veio para a Floresta, bairro tradicional que abriga a família até os dias de hoje. Aqui, ele construiu, inicialmente uma casa para a família do filho, meu pai. E, depois a própria casa. E uma casa para a filha. Esqueci-me de contar que meu avô só tinha o curso primário, sendo  construtor licenciado à época.

            Pois bem. A menina que eu era cresceu.

            E, um dia, aprovada em concurso público, foi trabalhar no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no antigo Serviço Cível. Ali, foi designada para várias tarefas, inclusive para fazer a distribuição de processos.

            Esse serviço, se não me falha a memória, era feito uma ou duas vezes por semana e consistia em sortear, manualmente,  junto com o Presidente do Tribunal os desembargadores relatores para os processos cíveis, anotando-os nos “Livros de Distribuição de Processos”. Era uma tarefa de muita importância. Imaginem! Distribuir no Gabinete da Presidência, ao lado  do Presidente, assessorada pelo seu Secretário, assediada, no bom sentido, pelos advogados de renome, ansiosos para saberem as câmaras cíveis  onde seriam julgados seus processos e pelas partes impacientes   que não viam a hora de finalizar suas demandas.

            Era tão importante que a funcionária encarregada do serviço tinha de apresentar-se muito bem, nunca de calças compridas, sempre de  meias finas e sapatos de saltos altos.

            Certo dia, estava eu no Gabinete,  aguardando a hora de distribuir os processos, quando, para passar o tempo, resolvi olhar os objetos guardados em  umas estantes de madeira com portas guarnecidas de vidros bisotés.

            Qual não foi minha surpresa, ao ver, dentro de uma delas, um tinteiro idêntico ao tinteiro do meu avô. Fiquei tão alvoroçada com a descoberta que não consegui conter-me e, mui respeitosamente, como a situação o exigia, perguntei a alguém sobre aquele tinteiro, informando, timidamente, que eu tinha um também, igualzinho àquele, sem tirar nem por.

            Responderam-me que aquele tinteiro era o tinteiro usado por Afonso Penna, ao assinar o ato de mudança do Tribunal de Relação para Belo Horizonte.

            Nobres destinos desses tinteiros! O meu pertencera a um Prefeito de uma cidade do interior, mas importante reduto político  e aquele, a um Governador de Estado.  Naqueles tempos, isso era currículo para não botar defeito.

            Hoje o tinteiro centenário do meu avó é meu. Ganhei-o em 1957. Minha tia , sabendo que eu o admirava, escolheu-o para me dar de presente. Uma lembrança póstuma do meu avô paterno e padrinho de Batismo.

            Tempos atrás, fui procurar o tinteiro do Tribunal. E fui ao local certo. Encontrei-o no “Memória do Judiciário” – MEJUD, identificado e etiquetado convenientemente como devem ser as peças  de museu.

            O meu continua comigo. Objeto antigo bem preservado. Mas sem identificação e sem etiqueta. Estava guardadinho,  até o dia em que, na “Roda de Leitura”, uma simples palavra bastou para resgatá-lo nos escaninhos da memória.

            Escrevi sua história. Falta, agora,  garimpar mais um pouco os 3 livros. Quero encontrar o texto em que a  frase perdida fala de um tinteiro.

            E, se encontrá-la, vou divulgá-la. Para que todos saibam o poder de uma única  palavra no resgate de lembranças arquivadas na memória: Tinteiro … do meu avô … da neta … do Tribunal …de Machado de Assis… da roda. (*)

 

Gincana do NAP

Prova Roda de Leitura.

Grupo 1

Lea Leda Schmidt Correa.

 

(*) – Em tempo: Cheguei à conclusão de que esse texto surgiu graças às atividades da “Memória Ativa” com a técnica :

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