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A ETERNA DÍVIDA DE MINAS GERAIS

sexta-feira, 12/08/22 13:47 O cartum mostra uma grande caixa lacrada, identificada como Dívida Pública, que é carregada por pessoas de diversas (PCDs, pessoas de várias etnias, idades e gêneros), nos rostos e nos corpos desses personagens há uma expressão de muito esforço para suportar o peso da caixa com a dívida, alguns personagens estão saindo debaixo da caixa e seguram uma faixa com a mensagem "Auditoria Já". Acima da caixa, há dois personagens, um com um pé de cabra tentando abrir a caixa da dívida e outro com uma lupa, fazendo menção à Auditoria da Dívida Pública.

FOTO: Reprodução / Auditoria Cidadã da Dívida

O Estado se endivida para garantir investimentos públicos e atender às demandas sociais

Eulália Alvarenga
Marco Túlio da Silva
Edição: Wallace Oliveira

Para nivelar o entendimento quanto à origem da dívida dos estados brasileiros, é importante destacar que cada unidade da federação elabora anualmente a previsão orçamentária, expressa em lei, que dispõe sobre as receitas e despesas esperadas para o ano de referência, conforme o plano de ações governamentais.

Quando as receitas são insuficientes para custear as despesas, tem-se um déficit orçamentário. Abstraindo a emissão de moeda ou a emissão de títulos públicos, restrita ao governo federal, as dívidas contraídas pelos demais entes subnacionais são realizadas por meio de contratos de empréstimos (dívida contratual), compondo a dívida interna (aquela em moeda nacional) e a dívida externa (aquela em moeda estrangeira). A dívida contratual também pode ser contraída pela União.

Para evitar o déficit, pode-se buscar equilíbrio orçamentário, também entendido por equilíbrio fiscal, elevando as receitas públicas e reduzindo as despesas públicas (cartilha do neoliberalismo fiscal), mas a elevação de receitas tem limitações no tempo (princípios da anualidade e noventena) e limitações em função do esgotamento da capacidade contributiva, enquanto a redução de despesas afeta a prestação dos serviços públicos e investimentos.

Aí, surge a pergunta: contrair dívida pública é bom ou ruim? E a resposta mais razoável entendemos ser: depende dos motivos que determinam o endividamento e dos termos e condições de pagamento e rolagem.

Desde os estudos econômicos abordando as intervenções contra cíclicas, ficou demonstrado que, em momentos de recessão econômica, o Estado tanto pode quanto deve aumentar o gasto público, mesmo que contraindo dívida, para manter emprego e renda, fazer investimentos, além de atender as demandas sociais, ainda maiores no período de recessão. Aqui, o motivo determinante é que o ganho social decorrente dos empréstimos (dívida) é maior do que o gasto que a dívida poderá gerar para a sociedade.

Como a renda das famílias e das empresas se reduzem durante a recessão, as receitas do Estado também se reduzem. O gasto público (tão necessário) justifica o endividamento público. A dívida pública também pode ter como causa aspectos da política monetária e cambial, mas para fins de análise da dívida estadual, estes aspectos têm implicação apenas reativa, ou seja, os estados e suas dívidas são impactados pelas políticas cambial e monetária (conduzidas pelo governo federal).

Pontuar estes aspectos é fundamental para afastar o discurso de que o Brasil ou Minas irá quebrar (essa é uma lógica do setor privado) ou poderia ser uma preocupação em contexto de elevada dívida externa, o que também não é o caso do Brasil.

Esta lógica das finanças públicas explica e justifica o fato de, por exemplo, os Estados Unidos terem dívida pública sistemática desde o século XIX e o Japão ter dívida pública próxima de 300% do Produto Interno Bruto (PIB), sem maiores preocupações para nenhum dos dois países.

No inconsciente coletivo, predomina a ideia de que os Estados se endividam por incompetência em gerir receitas e despesas, mas exceto em situações de políticas públicas equivocadas, o Estado se endivida é para garantir investimentos públicos e atender às demandas sociais, pois os recursos são limitados e as necessidades ilimitadas.

Mas está tudo bem com a dívida pública de Minas?

Não! existe um problema (taxa de juros) decorrente de conflito entre o interesse público e o interesse privado e um problema federativo (termos contratuais e de renegociação das dívidas). Aqui, o foco são as condições de pagamento e rolagem da dívida.

No caso específico da dívida de Minas com a União, ainda temos o fato de que alguns eventos impuseram ao Estado a necessidade de endividamento.

Sobre as taxas de juros, o Brasil pratica a maior taxa real de juros do mundo, mesmo com as recentes elevações de taxas até mesmo em economias consolidadas, como nos países da Europa e Estados Unidos.

Como conviver com dívidas sujeitas a taxas de juros entre 7,5 e 12% (caso da dívida de Minas) quando a economia tem crescido próximo de 1% ou nem mesmo cresce (cenário da última década)? E ainda há na rolagem da dívida pública a incidência de juros sobre juros, inobstante ser expressamente vedado.

Vejam o que diz a Súmula 121 do STF: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada.”

Neste cenário, entre 1998 e 2019, Minas pagou R$ 45,8 bilhões de juros e amortizações da dívida renegociada com a União (no âmbito da Lei 9.496/97, incluindo-se o PROES – Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária). Ainda assim, essa dívida passou de R$ 14,9 bilhões para R$ 93,7 bilhões e, em 2022, a dívida já atingiu cerca de R$150 bilhões (dados do Tesouro Nacional). O Estado pagou sua dívida várias vezes, mas os mecanismos nefastos de rolagem acabam por eternizar a dívida.

Taxas de juros elevadas aumentam a dívida pública (pesando no bolso de todo cidadão). Os grandes beneficiados são às instituições financeiras e grandes empresas, que lucram com as aplicações financeiras, inclusive títulos públicos. As aplicações por vezes rendem até mais que a própria atividade produtiva. Tal política gera conflito entre o interesse público e o privado, além de desestimular a atividade produtiva.

Chamam a atenção também os termos de contratação e renegociação das dívidas dos Estados com o Governo Federal desde fins do século XX, pois, além de elevados juros cobrados, de fundamentação legal questionável diante em uma relação entre Estados e União, foi pautada por indexação ao O Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), um índice altamente influenciado pela variação cambial.

O resultado é um crescimento exponencial da dívida, em função do elevado serviço da dívida (pagamento de parcelas e encargos) e tal gasto, diferentemente dos gastos sociais com educação, saúde e outros, sequer está sujeito às limitações do teto de gastos.

Nos anos 2000, em diversas renegociações, repetiram-se os juros altos e a indexação por índices nefastos, sempre em prejuízo para os estados e os cidadãos.

A formação da dívida púbica contratual mineira foi impactada (1/3 da dívida) com a privatização ou extinção de bancos públicos (Bemge, CREDIREAL e Minas Caixa), quando, seguindo determinação do Governo Federal, o Estado de Minas Gerais assumiu a dívida daqueles bancos (sem qualquer auditoria) em valor superior àquele dos ativos. Há indícios de que os “rombos” dos bancos estaduais surgiram devido ao não pagamento de dívidas de grandes empresários, incorrendo em estatização de dívidas privadas.

Gastou-se, à época, aproximadamente R$ 1,5 bilhões para sanear o Bemge e a parte “boa” foi vendida ao Banco Itaú por aproximadamente R$ 500 milhões. Com a dívida contraída no PROES, o que se fez foi sanear bancos públicos e entregar a parte “boa” ao sistema financeiro, enquanto o povo mineiro ficou com a parte “podre”, em especial, a dívida.

Os outros dois terços da dívida têm origem no refinanciamento contratual da dívida mobiliária (que, no caso de Minas Gerais, era de R$ 10,2 bilhões, à época), o que se deu por 100% do valor de face dos títulos públicos emitidos pelo Estado, sendo que tais títulos haviam sido arrematados por instituições financeiras com grandes descontos, como anunciado à época, e o seu valor de mercado ficava muito abaixo do valor de face.

Posteriormente, o Governo Federal também conclamou os estados, em especial os estados exportadores de produtos primários e semielaborados (minérios e agropecuária) a desonerarem o ICMS nas exportações de tais produtos (Lei Kandir), visando a resolver um problema conjuntural (balança comercial e câmbio) do país com a promessa de ressarcir os estados pela perda de ICMS. Porém, o ressarcimento não veio e Minas Gerais e outros estados tiveram drástica redução de suas receitas, impactando negativamente as contas públicas e impedindo-os de amortizar a dívida, neste caso, pagando uma conta (balança comercial e câmbio) que era de todo o país.

Além da perda de arrecadação do ICMS nas exportações de produtos primários e semielaborados, a Lei Kandir garantiu aos exportadores o aproveitamento integral dos créditos do ICMS relativo aos insumos adquiridos, o que agravou ainda mais o impacto negativo nas finanças estaduais.

No período de 1996 a 2019, Minas perdeu mais de R$ 135 bilhões, sendo que 25% desse valor pertence aos municípios, aniquilando a capacidade de atender às demandas sociais e desequilibrando o pacto federativo.


Elaboração: AFFEMG – Associação dos Funcionários Fiscais do Estado de Minas Gerais / Fonte: CONFAZ – COTEPE – GT 08 Quantificação (extraído do da Comissão Especial de Acerto de Contas – ALMG)

1) Valores calculados pelo GT 08 – Quantificação considerando os valores do imposto que deixou de ser cobrado nas exportações de produtos primários e semielaborados, bem como a parcela que deixou de ser cobrada relativa ao ativo permanente, descontados os valores repassados pela União ao Estado às unidades da Federação a títulos de ressarcimento ou de auxílio às exportações.
2) Valores corrigidos pelo GT 08 – Quantificação utilizando o índice médio do IGP-DI.
3) Índice acumulado do primeiro dia de cada ano (período) até 30/12/2016.

O Estado requereu em juízo o ressarcimento das perdas, a Justiça reconheceu a lesão às finanças públicas de Minas, mas o governo mineiro cedeu à pressão do Governo Federal e aceitou desistir de toda e qualquer ação judicial para firmar acordo de receber uma pequena parcela das perdas e de forma parcelada.

Para Minas Gerais, estado que mais perdeu receita com a Lei Kandir, o valor previsto no acordo corresponde a pouco mais de R$ 8,7 bilhões, pagos em 17 anos (R$ 6,5 bilhões do Estado e R$ 2,1 bilhões dos Municípios), valor que não chega a 7% daquele devido pela União. Em relação à questionável dívida com a União, o governo federal não tem o mesmo procedimento, faz pressão, e o governo atual aceita, para que Minas assine o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) ou que Minas pague integralmente a suposta dívida. O RRF tem várias agravantes contra o Estado, inclusive a renúncia a todos os processos judiciais referentes à dívida com a União.

Estudos apresentados por Minas e reconhecidos pelo Tribunal de Contas da União apontam que a dívida do Governo Federal com Minas, em função do não ressarcimento de perdas da Lei Kandir (R$ 135 bilhões), equivale ao valor da dívida de Minas com o Governo Federal (R$ 150 bilhões), ou seja, mesmo com todos os problemas de contratação e renegociações, nem era para Minas ter dívida alguma com o Governo Federal, no máximo haveria uma pequena dívida residual.

Contudo, enquanto Minas concedeu desconto de 93% e parcelou o valor em 17 anos o que tinha a receber da União em função da Lei Kandir, a dívida de Minas com a União, referente ao contrato assinado em 1998, continuou a ser cobrada integralmente, ainda que com suspensão judicial de pagamentos (somente a suspensão dos pagamentos, pois os encargos continuam a incidir mensalmente), o que lesou e continuará lesando o povo mineiro (as gerações futuras conviverão com essa dívida eterna). Dois pesos e duas medidas.

Recentemente, decisões judiciais dos tribunais superiores (autorização para renegociar a dívida nos termos do Regime de Recuperação Fiscal e autorização para aderir ao Regime de Recuperação Fiscal independente de deliberação da ALMG) anularam o Poder Legislativo, ferindo o debate democrático.

Além disso, a Lei Complementar 194, defendida pelo Governo Federal, que limitou alíquotas dos combustíveis e outros produtos, gerou impacto negativo nas contas públicas estaduais, ao argumento de conter inflação, mas a inflação tem outros fatores determinantes e, novamente, Minas e os mineiros pagarão a conta para atender ao interesse do governo federal, neste caso, com nítido viés político eleitoral.

É importante frisar que o governo federal, desde a década dos 90, tem imposto aos estados perda de receita, levando a endividamentos involuntários e ferindo o pacto federativo, o que requer uma revisão técnica (auditoria) e rediscussão política da dívida. Além disso, a indexação pelo IGP-DI e os elevados juros, inclusive de forma capitalizada, formam um conjunto que atrocidades que injustamente eternizam a dívida de Minas.

Eulália Alvarenga é economista, especialista em Gestão Pública e Direito Tributário. 

Marco Tulio da Silva é economista, bacharel em Direito, especialista em Administração Pública e Direito Tributário e vice-presidente da Associação dos Funcionários Fiscais de Minas Gerais (Affemg).

Fonte: Brasil de Fato

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