UM SOL PODE NASCER DENTRO DE NÓS
quinta-feira, 01/12/16 15:00
"Vozes que não escuto senão no sangue como se sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo.
"É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima."
Assinado: O tradutor de Tizangara.
Assim se manifesta, no livro "O último voo do flamingo", o Tradutor de Tizangara, aquele que transcreveu, em português visível, as falas que compõem o livro.
Seu nome não sei. E nem preciso saber.
"O nome da pessoa é íntimo como se fosse um ser dentro de outro."
Para mim que leio livros e que, com certeza, não sei ler o chão e os caminhos secretos da terra, bastou-me conhecer o Tradutor de Tizangara pelo que ele escreveu. Bastou-me saber que era um rapaz negro, fluente em línguas locais e mundiais razão por que Sua Excelência, o administrador Estêvão Jonas, homem das mãos aquecidas como carvão aceso, nomeou-o tradutor oficial, a fim de recepcionar um italiano, um certo Massimo Risi, integrante da força de paz da ONU.
Engana-se quem pensa que Estevão Jônas quisesse mesmo recepcionar Massimo Risi. Porque ele acabou revelando suas reais intenções. Na verdade, ele queria que o Tradutor de Tizangara espionasse o italiano E que, por sua vez, Chupanga, seu adjunto, espionasse o tradutor e o italiano, cabendo a ele, Estêvao Jonas, missão maior: espionar os três, o adjunto que espionaria o tradutor que espionaria o italiano.
Esse estrangeiro chegou em Tizangara, para investigar estranhos acontecimentos que espantavam a população local: soldados das Nações Unidas, que vinham de passagem, "gafanhotos" como eram chamados, e, de repente, explodiam misteriosamente. Soldados cuja missão era impedir o retorno da guerra, trazendo, novamente, os horrores que acompanham todas as guerras.
Eles morriam ou eram mortos? Mistério. Ninguém sabia como explodiam. Explodiam, simplesmente, sempre que se despenteavam com uma mulher. Deles restavam suas boinas azuis e, por incrível que pareça, os sexos "avultados e avulsos", testemunhos fálicos dos incríveis acontecimentos. Reconhecê-los depois de mortos ou identificá-los pelos métodos comuns era impossível, a não ser, talvez, com a preciosa ajuda da única prostituta da vila, Ana Deusqueira, uma "mulher de virar lençol". Familiarizada com a genitália dos soldados, talvez fosse ela a mais indicada para dar a palavra final sobre a identidade dos soldados explodidos.
Visando a subir na carreira através de uma promoção, Massimo Risi entregou-se de corpo e alma a seu mister. Mergulhou, para desvendar o mistério das explosões, no universo de lembranças e vivências dos habitantes da vila, descobrindo, pessoalmente, através dos depoimentos estranhos, às vezes fantásticos dos personagens, os enigmas de Tizangara.
Juntou as peças de um quebra-cabeças, e, à medida que se aprofundava nos costumes e crenças daquela gente, apropriava-se da chave que poderia levá-lo a solucionar o mistério da vila. Valeu-se do convívio com o Tradutor de Tiganzara, amou as mulheres locais (Ana Deusqueira e Temporina), aprendeu a "pisar aquele solo como quem ama, como se pisasse o peito de uma mulher" e absorveu sabedoria junto de Sulplício, pai do Tradutor de Tizangara, e do feiticeiro Zeca Andorinho.
Sentiu-se, por fim, um filho da África, irmão do Tradutor de Tizangara, que, por seu turno, o aceitou como um "mais velho".
Testemunhou muitos fatos e emitiu muitos relatórios, e, por fim, embora soubesse que seu gesto significaria sua demissão dos quadros de consultores da ONU, escreveu, sobre os últimos acontecimentos: ….. não tenho alternativa senão relatar a realidade com que confronto: todo esse imenso país se eclipsou como que por um golpe de magia. Escrevo na margem desse mundo, ao lado do último sobrevivente dessa nação.
Relatório escrito e nunca enviado, porque transformou-se em um pássaro de papel, um flamingo que haveria de vir a despeito do último voo de outro flamingo.
Reinvestimento na palavra, o princípio de tudo.
Os personagens a que me referi, eu os fui conhecendo graças ao Tradutor de Tizangara., aquele que, ouvindo confissões e escrevendo depoimentos, se "livrava de lembranças como um assassino se livra do corpo de sua vítima."
Talvez, seja esse tradutor cujo nome desconheço "o ser recolhido dentro de outro", aquele que tinha um nome que não me faz falta saber…
Não sei mesmo seu nome. Sei, no entanto, que um rapaz negro falando de escutar no "sangue a lembrança que surge da profundidade do corpo", só podia mesmo ter sofridas e pesadas memórias sobre a essência de uma África, massacrada por anos de colonialismo e arbitrariedades, resistindo, no entanto, com voz própria, a voz dos seus filhos, aqui representados pelos personagens do livro.
África cujo momento histórico retratado foi contado por "palavras que ainda não tinham nascido".
Essa história fantástica do último voo do flamingo aconteceu em Tizangara, depois da guerra de Independência e dos anos de guerrilha, quando Moçambique vivia um momento de reestruturação social e de reorganização das forças políticas.
Tizangara, no entanto, nunca existiu. O autor criou uma pequena vila imaginária ao sul de Moçambique onde duelavam forças opostas e que se completavam: tradição e modernidade, informação e sabedoria , rito e destruição , ciência e feitiçaria.
Seus habitantes, partícipes do voo do Último Flamingo, também não existiram. Foi o Tradutor de Tizangara que os fez emergir das páginas do livro, dando-lhes vida própria e atribuindo-lhe papéis também não vividos. Personagens de livro.
Personagens próprios de uma Tizangara Terra onde o mal se opunha ao bem.
Estevão Jonas, o administrador e Ermelinda, sua mulher. Ambos, ex- guerrilheiros que esqueceram seus sonhos de beleza e calaram seus ideais, deslumbrados e ofuscados pelo exercício do poder sobre aqueles pelos quais tinham lutado para livrá-los da condição de subserviência e inferioridade. Estevão Jonas inescrupuloso, ávido de poder e prepotente. Ermelinda, consumista, vaidosa, valendo-se de sua condição de Primeira Dama para gabar-se, ostentar posses e pompa. Contraditória, no entanto, porque, embora odiasse Ana Deusqueira, por duas vezes, a socorreu. Contraditória, porque respeitava Zeca Andorinho e ouvia o Padre Muhando,
Jonassante, sobrinho e enteado do administrador, um aproveitador ligado ao comércio de drogas e acobertado o tempo todo pelo tio todo poderoso, que, talvez, auferisse lucros com suas atividades ilícitas.
E, é claro, Chupanga, o adjunto do administrador, subserviente, um "engraxa-botas", submisso aos grandes, arrogante com os pequenos. "Burro na companhia do leão não cumprimenta cavalo".
Personagens de uma Tizangara Água , representantes do grupo dos excluídos, inferiores em sua condição social, superiores, no entanto, como seres humanos, deixando fluir de seus atos dignidade, bondade e amor, tais como a própria Ana Deusqueira, a meretriz que não se deixou desmeretrizar e que sabia, com clareza, a diferença entre o sábio branco e o sábio preto dizendo:
– Sabe qual a diferença entre o sábio branco e o sábio preto? A sabedoria do branco mede-se pela pressa com que responde. Entre nós é mais sábio aquele que demora a responder. Alguns são tão sábios que nunca respondem.
Mulher que os homens visitavam sem nenhumas maneiras e dela se serviam, sem perder tempo com um beijo. Ao conhecer o italiano, renovou sua esperança de que homens bons pudessem existir. Mulher ainda capaz de dizer:
– Não me basta ter um sonho. Eu quero ser um sonho.
Temporina, a moça-velha, castigada com a feiúra e velhice precoce, porque demorou a entregar-se aos homens da vila e foi depois desfeitiçada pelo amor do italiano. E seu sobrinho Sem Nome, lento, tonto, inábil e desmiolado que explodiu também, porém em outras circunstâncias tão misteriosas quanto aquelas que matavam os boinas azuis.
Personagens de uma Tizangara Céu, figuras quase surreais que nos levam a questionar se eles já não seriam personagens do Céu vivendo na Terra, uma vez que transitavam, livremente, nas duas dimensões.
Figuras tais como Hortênsia, tia de Temporina, que, viva, tinha acesso a "outras" visões e que depois de morta visitava os sobrinhos, em forma de louva-deus, chegando mesmo a cuidar, diariamente, do alimento do sobrinho Sem Nome, um portador de necessidades especiais, talvez.
O Padre Muhando, aparentemente meio louco, dizendo, sem cessar: – O inferno já não aguenta tantos demônios! O lunático tão lúcido que em sua lucidez dizia: – É preciso consultar um demônio para saber a morada de outro demônio.
Primeiro bode expiatório a quem atribuíram responsabilidade pelas explosões misteriosas. A quem davam bebidas para desacreditá-lo diante de seus fiéis, porque ele falava além dos limites, contrariando a administração, temerosa dos efeitos de suas palavras, uma vez que ele descobrira a causa da morte dos soldados explodidos e de "outras" explosões cujas origens era melhor desconhecer e, se possível, silenciar.
E, finalmente, Zeca Andorinho e Sulplício, o Flamingo, cujo último voo encerrou a história de Tazangara. Figuras bizarras. Suas palavras falavam de tradição, sabedoria, magia e feitiçaria.
Zeca Andorinho, o feiticeiro, fazia feitiços de lagarto, de formiga, de sapo, de cágado, feitiço este último dado ao italiano, para evitar que ele também explodisse, ao se relacionar com as "meninas" de Tizangara.
Sulpício, pai do Tradutor de Tizangara, o único com poderes para escutar o rouco grasnar dos flamingos. Dívida que ele assumira com os pernaltas, quando, uma noite, afogando-se, durante uma pescaria, "bebendo o oceano, engolido pelas ondas e vomitado pela noite", os flamingos o salvaram. Porque, em plena tempestade, quando se perde a noção da terra dentro da imensidão do oceano, é a presença e a voz dos flamingos que orienta os perdidos. O velho pescador fixara o canto dos e bichos e regressava a essa memória sempre que se sentia perdido.
São deles as falas com que finalizo minhas impressões sobre o livro "O último voo do flamingo" de Mia Couto.
"Há perguntas que não podem ser dirigidas às pessoas, mas à vida. Pergunte à vida, mas não a este lado da vida. Porque a vida não acaba do lado dos vivos. Vai para além, para o lado dos falecidos. Procure desse outro lado da vida."
"O corpo era feito de tempo. Acabado o tempo que nos é devido, termina também o corpo. Sobra o que? Ossos. O não-tempo, nossa mineral essência. Temos de tratar bem do esqueleto, nossa tímida e oculta eternidade.
"Somos madeira que apanhou chuva. Agora, não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós."
Gincana do NAP
Prova – Roda de Leitura
Grupo 1
Lea Leda Schmidt Correa.