A VIDA É UM BEIJO DOCE EM BOCA AMARGA
quinta-feira, 01/12/16 14:55
Há pessoas que colecionam selos. Outras, moedas. Coleções comuns, se consideramos que por aí há outras bem singulares tais como: coleções de xícaras, pratos decorativos, máquinas de datilografar, câmeras fotográficas, chaveiros, postais, lápis de propaganda, ímãs de geladeira, sapos, corujas e tantas mais, das quais, no momento, não me recordo.
Pois bem. Eu faço coleção de provérbios, adágios segundo alguns, e de ditos populares. Frases bem originais e sutis que, inseridas na conversa diária ou em textos, exprimem sabedoria popular. Tenho cerca de 400 provérbios na minha coletânea e poderia ter mais, se não fosse a infelicidade de ter sido roubada, durante um seminário sobre Comunicação Oral, quando uma pasta, com todo o meu material de apoio, textos, apostilas, transparências, modelos de atividades, jogos de equipe e……minha preciosa coleção de provérbios desapareceu misteriosamente. Tive, então, de recomeçar minha coleção que está longe de acabar. Renova-se sempre. Afinal, é "de grão em grão que a galinha enche o papo".
Encantei-me com os provérbios por volta de 1951, quando estudava no Colégio Santa Maria.Uma professora de Francês levou-os para a turma e sabê-los par coeur tornou-se uma obrigação, tarefa escolar com pontuação e tudo. Lembro-me sempre de um deles:
– "Pierre qui roule n amasse pas mousse".
Anos mais tarde, em conversa com um jovem, amigo de meu filho, ele me falou de um livro muito interessante: um livro de provérbios. Depois de ler o livro, iniciei minha coleção sui generis: a coleção de provérbios.
Sou uma pessoa que sempre introduzo em minhas falas um provérbio. E daí, pra começar a introduzi-los nos meus textos foi um pulo. "Tiro e queda". "Bateu, levou".
Nas histórias que reescrevo para contar em público ou em família sempre há provérbios. E uma amiga, contadora de histórias assim como eu, faz algo parecido: introduz músicas em suas apresentações, sejam elas do repertório popular, sejam canções infantis do folclore brasileiro ou estrangeiro.
Pois bem. Em consequência da minha mania, estou sempre atenta à fala dos outros, garimpando provérbios que eu não conheça. Ouço, anoto em um papelzinho e jogo na bolsa para depois acrescê-los à minha lista que vai só engordando.
Ao ler um livro, sempre faço leituras paralelas ao texto principal. Leio, primeiramente, para conhecer a história de fundo do livro, mas, volto a ler, centrada nas mensagens subliminares ou focos que me chamem atenção. Catando no texto essas pérolas de sabedoria representadas por ditos populares e provérbios.
Imaginem, então, como foi para mim ler o livro "O último voo do flamingo" de Mia Couto na "Roda de Leitura" do SINJUS. O autor, no seu texto, elabora uma crítica ácida aos semeadores da guerra e da miséria, mas também escreve uma trama poética e cheia de esperança. O fato principal do livro, aquele que salta aos olhos, refere-se às estranhas explosões dos soldados da paz da ONU em uma vila imaginária ao Sul de Moçambique. Um segundo jeito de ler destaca, na estruturação do texto, palavras jamais vistas, tais como: zunzunar, cabisbruto, solteirar-se, admirosa, tresandarilhar, esbafurado, ruar, açucaroso, cabisbaixar-se, tomatear-se, etc.
E um terceiro olhar, subjetivo e mais refinado, permite identificar, na fala dos personagens curtidos pelo sofrimento, as crenças e valores do povo implícitos nos ditos populares e provérbios que aparecem no texto.
Calculem, portanto, a delícia dessa leitura para mim, uma ouvinte de histórias desde a meninice, uma devoradora de livros na adolescência, uma entusiasmada contadora de histórias na fase adulta e um arremedo de leitora crítica e escritora na fase madura … Eu que policio a fala do outro para encontrar novidades. Eu que recheio meus textos com provérbios. Eu que coleciono provérbios.
Foi um regalo. Afinal, "quem procura acha". Já na dedicatória do autor encontrei:
– A Joana Tembé e ao João Joãoquinho que me contaram estórias como quem rezava.
Pela dedicatória, não consegui identificar quem seriam esses dois. Mas, relendo meu "Livro de Vida", conclui, por analogia, que eles foram os contadores de histórias que encheram a vida do autor de fantasia. Porque eu tive uma incansável contadora de histórias na minha infância, a quem dedico o primeiro dito de Tizangara transcrito aqui:
– "Os amados fazem-se lembrar pela lágrima. Os esquecidos, pelo sangue".
Os leitores irão conhecer muitos outros provérbios e ditos de Tizangara. Através deles a alma da África vem à tona. Analisando esses provérbios e comparando-os com os nossos, é possível ouvir e sentir os ecos da alma africana repetidos dentro de nossa própria alma. Há similaridades de sentimentos e emoções em seus conteúdos. Situação peculiar, bem engraçada, em que um provérbio se contradiz:
– "Quem vê cara não vê coração".
Nos provérbios que anotei, eu consegui ver a cara e o coração dos habitantes de Tizangara, a vila imaginária, cenário do último voo do flamingo.
Nos provérbios e crenças que transcrevi, eu deixo para os leitores:
- o incentivo para buscar a agulha que cai no poço. Não basta espreitar.
- o desafio de espreitar atrás do espelho. Na pior das hipóteses, um macaco, espreitando por trás do espelho, só fica maluco.
- a certeza de que o pato descobre a dureza das coisas só quando quebra o bico.
- a dignidade do milho que morre e fica de pé.
PROVÉRBIOS E DITOS POPULARES
- Quem conhece a sujidade do muro é o caracol.
- O mundo tem mais dentes que bocas.
- A verdade tem perna comprida e pisa por caminhos mentirosos.
- Casas juntas ardem juntas
- Caracol nunca deita fora sua concha.
- Morcego faz sombra é no teto.
- Burro na companhia do leão não cumprimenta o cavalo
- Cabrito come onde está amarrado.
- Se agulha cai no p poço muitos espreitam; poucos descem para buscá-la.
- A urina de um homem sempre cai perto dele.
- A boca é grande e os olhos são pequenos.
- Pato descobre a dureza das coisas só depois de quebrar o bico.
- Quem veste o hipopótamo é a escuridão.
- A cinza voa mas o fogo é quem tem asa.
- Lágrima de pássaro se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
- As ruínas de uma nação começam no lar do pequeno cidadão.
- É o cão vadio que encontra o velho osso.
- Vaca sem cauda não enxota moscas.
- A barba sempre encosta no cabelo.
- O homem se afoga é nas águas calmas.
- Milho é que morre e fica em pé.
- Quem é que voa depois da morte?
- O que não pode florir no momento certo, acaba explodindo depois.
- Uns sabem mas não acreditam. Esses não chegam nunca a ver. Ouros não sabem e acreditam. Esses não veem mais que um cego.
- O macaco ficou maluco de espreitar por trás do espelho.
- O cão lambe as feridas? Ou já é a morte, por via da chaga que beija o cão pela boca?
- Se queres ver de noite passa pelos olhos a água onde o gato lavou os olhos.
- Queres saber onde está o gato? Procura no canto mais quente.
- A vida é um beijo doce em boca amarga.
CRENÇAS POPULARES
- Dá mau azar falar durante a refeição.
- Encontrar um louva-deus é um mau presságio. Significa que ali está um antepassado visitando os viventes, podendo tirar-lhes a razão.
- Verter pingos de bebida no chão é uma forma de homenagear os falecidos.
- Morrer de mãos dadas com alguém é um meio de passar-lhe o vazio da solidão.
- Limpar casas é purificá-las.
- Pisar memórias é despertar fantasmas.
- Para entrar na casa de um falecido recente, deve-se pedir licença.
- Pegar uma bengala e bater no chão afasta maus espíritos, assustando-os.
- Deixar mortos dormindo ao relento, sem cobrir-lhes o rosto, impurifica a noite.
- Comer carne de flamingo fortalece os homens, dando-lhes atributos tais como dureza de caráter, prontidão para matar e virilidade.
- Flamingos, voando rumo ao poente, empurram o sol para ele chegar ao fim do mundo.
- Melhor maneira de nos fazermos maiores é catando nas costas dos poderosos, assim como as avezitas catam parasitos nas costas os hipopótamos.
- Os fatos são verdadeiros depois de serem inventados.
Gincana do NAP
Prova Roda de Leitura.
Grupo 1
Lea Leda Schmidt Correa