ZAPZAP

segunda-feira, 19/09/16 11:15

Por Lea Leda Schmidt Correa

Ignoro o motivo. Mas, quando recebi aquela foto pelo whatsapp, acompanhada de um texto pequeno, mas muito familiar, senti vontade de encaminhá-la para um grupo de amigas que se encontraram, pela primeira vez, nos anos 50, fazendo o ῎Curso Normal῎ no ῎Instituto de Educação῎. Amigas que se encontram até hoje. Amigas que, agora, se comunicam todos os dias, através de um grupo de whatsapp chamado 33 Unidas.

            O texto que acompanha a foto diz assim:

Olhem para mim!

Eu me chamo Lili.

Eu comi muito doce.

Vocês gostam de doce?

Eu gosto muito de doce!

            E eu acrescentei uma legenda: Recordando leituras…

            Que motivos, além da própria emoção, me levaram a encaminhar a mensagem  recebida para meu grupo? Inconscientemente, talvez, eu quisesse disparar um gatilho ou destravar uma roda.

            A foto refere-se ao texto da primeira lição de um pré-livro: O Livro de Lili de Anita Fonseca. Pré-livro que, nos anos 50, estava no auge para alfabetização da criançada pelo método global.

            Por trás deste pré-livro, aliás de qualquer pré-livro,  estava a figura de D. Lúcia Casasanta, uma educadora excepcional, maior defensora e difusora do método global de contos para alfabetização de crianças. E o ῎Instituto de Educação῎ com seu ῎Curso Normal῎, respeitado centro educacional para formação de professoras primárias, cujo lema era: Educar-se para educar.

            O texto enviado pelo zapzap  foi o primeiro impulso para que uma nova  roda de leitura começasse a girar. Chamei-a ῎Roda de Leitura Tecnológica῎, porque essa roda iniciou seu giro, movida pelas mensagens disparadas por um grupo de zapzap. O grupo de zapzap das ex- alunas da turma do ῎Instituto de Educação῎ das quais falo nesse texto: 33 Unidas. Esse nome estendeu-se ao grupo.

            O giro desse roda, num turbilhão, revolveu muitas  lembranças, todas elas contando (ou cantando) experiências com os personagens do pré-livro de Lili, descrevendo surpresas com suas lições apresentadas, passo a passo, em cartazes coloridos, e falando da satisfação que foi aprender a ler de uma forma tão lúdica e prazerosa.

            Muitas colegas escreveram:

– Aprendi a ler nesse livro e recordo – me, muito bem, de todos ou quase todos os seus textos.

            Outra que se limita, quase sempre,  a ler as mensagens do grupo, respondendo-as, de tempos em tempos, foi, surpreendentemente, a primeira a dizer:

– Ei, vocês todas!!!!Um grande abraço para cada uma!!! Eu também aprendi nele e me lembro de muitos textos, não sei se todos…

            E mais uma que acrescentou , com uma pontinha de frustração:

– Aprendi em cartilha mesmo: ba, be, bi, bo, bu. Baba…bobo…bebe…beba…bebeu…bebi.

– Eu também aprendi a ler nesse livro, mas antes nossa professora nos iniciou com uma cartilha, se não me engano, de Thomaz Galhardo. Depois, fomos para o pré-livro de Lili.

            Que heresia! Mistura de métodos, cartilha e pré-livro. Essa escola estaria desatualizada? E a professora bem intencionada, insegura?  Insuficientemente convencida das vantagens do método global, para garantir-se, tratou de iniciar seus alunos com o recurso tradicional ainda em uso naquela época: cartilha.

            Até entendi. Porque eu sou aquela que não foi alfabetizada pelo método global de contos. E, durante muito tempo, fui acirrada defensora do método de silabação. Às escondidas de Dona Lúcia. As domésticas da minha casa, analfabetas de pai e mãe,   eu as iniciei na leitura, usando a tradicional Cartilha Elementar da Infância de Thomaz Galhardo (1.88… ). Eu estudei em Ouro Preto. Minhas colegas, na Capital. Desculpa esfarrapada para explicar minha pouco convivência com o método global de alfabetização.

            Com outras mensagens que chegaram no zapzap, aos poucos, foram-se  reconstituindo, na memória de cada uma, as etapas da alfabetização através do pré-livro O Livro de Lili.

            Havia cantigas também. Textos do pré-livro adaptados às melodias tradicionais do repertório infantil: Teresinha de Jesus, Minha gatinha parda, Cai, cai, balão, etc.

            Os resultados do Livro de Lili eram inegáveis, preparando os jovens leitores para leituras mais complexas (sic) como Lili, Lalau e o Lobo.

– O método global era, realmente, fantástico! Leitura corrente. Compreensão perfeita.

            Houve gente que, com ótimos resultados, trabalhou 20 anos, alfabetizando pelo método global.

            Contos… sentenciação… palavração… silabação.

– Eu ficava elétrica quando a professora levava aquele cartucho enrolado e ia abrindo devagar, mostrando a lição nova!

 – Eu adorava aqueles cartazes coloridos, a reconstituição das sentenças com as fichas de palavras. E as sílabas. E os envelopes para guardá-las. Priscas eras! Doces lembranças!

– Lili! Que delícia! Mamãe contava que eu chegava da aula, enfileirava as bonecas e ficava repetindo as lições aprendidas…

            Atrás do pré-livro de Lili, vieram outros: Os 3 PorquinhosA Galinha Ruiva  Professora de Metodologia da Linguagem, inovadora e ousada, era aquela que, orientada por Dona Lúcia Casasanta, se dispunha a criar o próprio  pré-livro.

            Mas, não tem bem que sempre dure nem mal que para sempre perdure. Surgiram outras propostas de alfabetização. Ninguém mais olhava para Lili. O doce azedou. E o nome de Lili foi esquecido.

– Eu também comecei com o livro de Lili. E levei o maior susto, quando vi meus filhos começarem de outra forma! escreveu uma colega cujo filho, hoje, tem 48 anos e é engenheiro.

            Também me assustei pelo mesmo motivo e questionei a mudança. Mas, no fundo no fundo, reconhecia, no processo de aprendizagem de leitura dos meus filhos, semelhanças com meu  processo pessoal. Confiei e eles aprenderam a ler sem pré-livros.

            Não vejo os meninos de hoje lerem correntemente. E eles escrevem mal. A compreensão de textos deixa muito a desejar Haja vista as pérolas dos vestibulares!

            O método global de contos hoje está no ostracismo. Dona Lúcia Casasanta é uma lenda cujo centenário comemorou-se em 2008. E pensar que, quando terminei meu Curso Normal, ela me convidou a participar de um projeto pioneiro em Brasília, focado no método global para alfabetização das crianças… Seria um protótipo da primeira CLÍNICA DE LEITURA DE LINGUAGEM, criada por ela em Belo Horizonte em 1974  e voltada para alunos com dificuldades de aprendizagem na leitura e escrita?

Olhem as minhas meias!

As minhas meias são azuis!

As minhas meias, tão bonitas, estão furadas!

Eu não sei coser!

Como há de ser?

 

Lili toca piano.

Lili toca assim:dó,ré,mi,fá…

Suzete ouve Lili tocar.

Suzete é a cachorrinha.

Toca, Lili, toca: dó,ré,mi,fá.

 

            Vejam como estavam implícitos, nos textos das lições, alguns valores da época. Menininhas tinham de saber coser. Pegava mal elas usarem meias furadas.  Era de bom tom menininhas tocarem piano. Não se faziam restrições aos doces. Lili comia muito doce e, além de gostar de doces, fazia doce de abacaxi.

– Vocês gostam de doce?

– Eu gosto muito de doce!

– Será que foi aí que comecei a viciar com açúcar? perguntou uma das minhas colegas.

            Eu gosto muito de doce! Eu gosto muito de doce! Eu gosto muito de doce! Que afirmação politicamente incorreta, repetida, inocentemente, por  meninos e meninas, decorando a primeira lição do Livro de Lili com o aval das mães prestimosas.

            Menininhas comendo doce …fazendo doce de abacaxi…

            Altos níveis de glicose. Diabetes. Hiperglicemia. Adultos e até crianças obesas. Adoçantes. Silhuetas esbeltas. Academias. Malhação.

            Havia também uma lição em que Joãozinho convidava Lili a andar no seu carro. Com Suzete, a cachorrinha. Naquele tempo, moças de família não entravam sozinhas em carros de rapazes.

            Lili era uma menininha. Politicamente incorreto? Nada a ver. Ela era uma menininha. Suzete, a cachorrinha, era boa companhia. Doce. Fiel. Carinhosa. Inofensiva.

            Estupro, pedofilia, sequestro, bala perdida,  violência no trânsito  eram verbetes de dicionários.

            Uma das minhas colegas lembrou ainda que Lili (mulher) era cozinheira e que Joãozinho (homem) andava de automóvel. Que folgado!

            Que mal havia nisso? Mulheres eram do lar. Cosiam, lavavam, passavam,  assavam e faziam doces. Prendas domésticas. Homens usavam chapéus e ternos de linho. Deles se esperava que fossem provedores do lar. Tinham carros. Sinal de status.  Em contrapartida, hoje, ῎somos todos feministas῎. Nós, as mulheres, dirigimos para baixo e para cima e os homens adoram cozinhar. Igualdade de gêneros. Só ainda lutamos contra o açúcar que, agora,  é uma ῎droga῎

            Quanto a mim, esforço-me para dispensar o doce, ainda que seja doce de abacaxi, ῎amor em pedaços῎ de nossas avós. Mas, com carinho e com afeto, faço meu doce  predileto: produzo textos para minhas ῎Rodas de Leitura῎.

            Mandei a primeira lição do pré-livro de Lili para meu grupo de whatsapp. E mexi com o imaginário de todo o mundo.

            É assim que funciona uma roda de leitura. Vai girando… vai girando em torno de um centro e, quando pára de girar… Que riqueza! Lembranças antigas. Reminiscências.  Propostas novas. Projetos.

– Que tal uma visita ao Museu da Escola na Gameleira?

            E com esse convite, ampliando o raio de ação da ῎Roda de Leitura Tecnológica῎ que girou, graças aos recursos modernos de comunicação, encerra-se, por hoje, uma série de  considerações em torno de um texto singelo do pré-livro: O Livro de Lili.

Olhem para mim!

Eu me chamo Lili.

Olhem o passado.

Vivam o presente!

Aguardem o futuro…

 

Lea Leda – Aposentada do TJMG

Roda de Leitura – SINJUS

 

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